Os Dispute Adjudication Boards (“DAB”) e o problema das decisões liminares

Por Leonardo Toledo da Silva[1]

 

Recentemente, participei de evento organizado pela Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem CIESP/ FIESP[2], em um painel que propunha, dentre outras, a seguinte questão: quando devem ser revistas as decisões dos dispute boards? Em um outro evento, também recente, organizado pela FIERGS e pelo IBDiC[3], em Porto Alegre, um colega de uma empresa pública tentava responder à seguinte questão: quando devem ser “judicializadas” ou “arbitralizadas” as decisões emitidas pelos dispute boards?

 

Sem dúvida, a questão da revisão das decisões dos dispute boards tem entrado na pauta das organizações preocupadas com esta ferramenta de prevenção e solução de conflitos. E com razão.

 

Tenho sustentado, no entanto, que a questão mais relevante, nessa temática, deve ser direcionada a um problema em especial, que é a revisão em caráter liminar das decisões dos dispute boards. A pergunta mais relevante, em meu entender, sobre a temática seria, portanto: em que situações podem ser revistas, em caráter liminar, as decisões dos dispute boards?

 

Passo a explicar, um pouco melhor, essa minha ponderação.

 

Como é de conhecimento da comunidade do direito da construção, há duas principais modalidades de Dispute Boards: os Dispute Review Boards (“DRB”) e os Dispute Adjudication Boards (“DAB”). Guardadas as peculiaridades de casos concretos, os DRBs, dentre suas funções, podem emitir recomendações cujo cumprimento não se faz vinculativo às partes. Já os DABs possuem como característica importante a capacidade de emitir decisões de caráter “adjudicador”, ou seja, vinculantes às partes, até que haja alguma decisão arbitral ou judicial em sentido contrário. E é justamente sobre os DABs, mais usuais que os DRBs, que interessa a questão proposta anteriormente.

 

Os Dispute Boards, de maneira geral, exercem também um papel importante na mediação dos conflitos e questões que lhes são trazidos, durante um projeto. Não é diferente com o DAB, muito embora este possa emitir decisões de caráter vinculativo. Quando, no entanto, não é possível solucionar, via mediação, a questão trazida ao DAB, cabe aos membros do DAB emitir uma decisão, que vinculará as partes, até decisão judicial ou arbitral em contrário.

 

A revisão judicial ou arbitral das decisões dos DABs não é um problema em si. Tampouco tem grande relevância nos determos sobre as razões internas que levam uma parte a tentar a revisão da decisão de um DAB.

 

É da regra do jogo que qualquer das partes tenha o direito de buscar a revisão da decisão de um dado DAB. Entendo perfeitamente as razões que levam, por exemplo, um gestor público, especialmente no momento atual de nosso país, a estar fortemente predisposto a levar a decisão de um DAB a arbitragem ou juízo, mesmo quando haja grande chance de esta decisão não ser revista, o que só traria custos para administração pública. Entendo as dificuldades que nossos gestores públicos têm enfrentado e até me solidarizo com eles.

 

O que, todavia, não me parece fazer sentido aos DABs, tanto no contexto privado quanto no da administração pública, é a busca da revisão das decisões em caráter liminar, salvo situações realmente excepcionais. Valem algumas explicações.

 

É preciso sedimentar uma informação essencial sobre os DABs, talvez a mais importante de todas, sobre essa temática. A função primária dos DABs não é a proteção de uma parte ou outra, mas sim a proteção do andamento das obras, o que, em última análise, é o desejo efetivo das partes envolvidas. É em função do bom andamento das obras que se justifica primariamente a existência dos DABs.

 

Os Dispute Boards são uma ferramenta de estabilização da relação contratual, sobretudo em situações de grande complexidade, em que existe uma clara tendência a comportamentos adversariais, nos quais há grandes chances de o projeto acabar sendo deixado em segundo plano pelas próprias partes, em prejuízo da sua execução. Nessas hipóteses, os Dispute Boards acabam funcionando com uma espécie de válvula de descompressão do projeto, permitindo que as partes voltem seu foco ao que realmente importa, ou seja, ao andamento do projeto.

 

Daí a razão pela qual toda a sistemática contratual estabelecida aos DABs cria a obrigação de que as decisões sejam tomadas em um prazo curto. Agilidade, portanto, nesse caso fala diretamente com as necessidades urgentes das obras. Os agentes que desenharam a sistemática dos DABs fizeram uma escolha clara: mais importante do que uma decisão formal e materialmente perfeita é a tomada de uma decisão ágil.

 

Nesse sentido, é comum se atribuir às decisões dos DABs o caráter de rough justice. Não se busca uma decisão de caráter jurisdicional, como seria o caso de uma decisão judicial ou arbitral, mas uma decisão eficiente.

 

Quando se ataca liminarmente a eficácia da decisão de um DAB está se subtraindo justamente a eficácia que a sistemática contratual criada buscava criar. A subtração da eficácia de curto prazo da decisão de um DAB claramente põe em xeque a sua própria razão de existir.

 

Neste sentido, tenho recomendado e entendo bastante salutar que as partes procurem lidar contratualmente com a questão, estabelecendo a renúncia das partes ao direito de rever liminarmente as decisões dos DABs, exceto por situações excepcionalíssimas. Claro que tal tipo de renúncia poderá sofrer algum nível de resistência ou incompreensão, inclusive acadêmica, com base em argumentos genéricos relacionados ao acesso à justiça e ao devido processo legal. Essa é uma questão que cabe aos processualistas, mas nos parece adequado, a este respeito, buscar o respaldo dos chamados negócios jurídicos processuais, estabelecidos recentemente pelo novo Código de Processo Civil, em seu artigo 190.

 

Esse seria um grande uso para o instituto do negócio jurídico processual.

 

Cabe por fim relembrar o precedente jurisprudencial, relativamente recente, contido em acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo[4]. Na ocasião, o TJ-SP reverteu uma decisão judicial emitida em primeiro grau que cassara os efeitos da decisão de um DAB. O curioso desse caso foi que, enquanto a decisão de primeiro grau justificara a cassação dos efeitos da decisão do DAB justamente por se tratar de matéria complexa, que comportaria alguma dúvida, o TJ-SP inverteu essa lógica.  Decidiu que, na ausência de qualquer fundamento claro para afastamento da decisão do DAB, a presunção deve se dar em sentido inverso, priorizando justamente a decisão técnica, por ele emitida.

 

Acertou na mosca a decisão do TJ-SP, no caso.

 

Vale lembrar que inclusive no que tange à própria qualidade da decisão, é muito pouco provável que uma decisão judicial liminar, tomada possivelmente com algumas horas de análise sobre o caso, muitas vezes com a visão de somente uma das partes, tenha qualidade superior à decisão de um DAB. Este, além de ser formado por autoridades em matérias técnicas e de direito da construção, se reúne periodicamente desde o início das obras, conhece suas dificuldades, e, quando recebe um pleito de uma parte, irá ouvir, inclusive presencialmente, ambas as partes, tendo a oportunidade de tirar dúvidas técnicas e jurídicas para uma decisão que, no caso dos padrões da FIDIC, por exemplo, será exarada em até 84 dias. A maturidade e a profundidade da sua análise técnica são inegáveis.

 

Honestamente, é pequena a chance de tal decisão não ter qualidade superior a uma decisão judicial em caráter liminar, sobretudo considerando o aspecto técnico. Mas, ainda que não o fosse, entendo que a revisão liminar das decisões dos DABs, pelas razões que já expus, não deveria ocorrer, exceto por situações excepcionais.

 

É aí que caberia um trabalho importante dos estudiosos da matéria: quais são essas situações excepcionais? Deixo a questão aos colegas.

 

[1] Presidente, IBDiC; Sócio de Toledo Marchetti Advogados; Mestre e Doutor pela USP; Professor da FGV Direito SP

[2] Conferência: Arbitragem e Dispute Boards na América Latina, realizada em 25 de setembro de 2019, nas dependências da CIESP/FIESP.

[3] Dispute Boards: Perspectivas Teórico-Práticas no Direito Brasileiro, realizada e 24 de julho de 2019.

[4] 10ª Câmara de Direito Público, Tribunal de Justiça de São Paulo, Registro: 2018.0000569855, AI-6.090/18.

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